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Lições da COP16 | Conhecimento Tradicional Associado e direitos indígenas: pilares na conservação da biodiversidade

Foto do escritor: GSSGSS

Por: Ana Maria Heeren Falkiewicz e Alessandra Silva Araújo 



A COP16 abordou importantes questões relacionadas ao uso do Conhecimento tradicional Associado (CTA), suas implicações e a necessidade urgente de proteger os direitos dos detentores desses conhecimentos. Durante os side-events da conferência, discutiu-se a crescente perda dos conhecimentos tradicionais sobre recursos genéticos ao redor do mundo, causada por uma série de fatores. A urgência em fortalecer estratégias para sua recuperação e conservação, ao mesmo tempo em que se protege os direitos dos povos detentores desses saberes, foi uma questão central. 


Empoderamento da economia indígena na África 

Um dos eventos mais esclarecedores sobre o tema foi promovido pela IPACC (Indigenous Peoples of Africa Coordinating Committee), REPALEAC (The Network of Indigenous and Local Populations for the Sustainable Management of Forest Ecosystems in Central Africa) e a FSC Indigenous Foundation. O painel discutiu o empoderamento da economia indígena no continente africano, através da utilização de sistemas e práticas de conhecimento tradicional. Representantes de países como África do Sul, Botswana, República Democrática do Congo e Marrocos compartilharam estudos de caso, explorando o contexto normativo e as implicações das convenções internacionais, como a Convenção sobre Diversidade Biológica, em relação aos direitos dos povos indígenas. 

Foram destacadas experiências sobre o fortalecimento dos sistemas de CTA e a regulamentação de seu uso, com ênfase em dois aspectos cruciais: o consentimento prévio, livre e informado (PIC) e os mecanismos de repartição de benefícios. Esses elementos são fundamentais para garantir que os benefícios gerados pelo uso do conhecimento tradicional sejam compartilhados de maneira justa e equitativa com as comunidades detentoras desse saber. 


Desafios na África: estrutura normativa e reconhecimento de direitos 

As discussões também revelaram um cenário desafiador no continente africano. A maioria dos países ainda não possui uma estrutura normativa consolidada para temas de ABS (Access and Benefit-Sharing), o que compromete tanto a conservação da biodiversidade quanto o direito à repartição justa de benefícios. A falta de um marco legal robusto e a ausência de um reconhecimento formal dos direitos indígenas em muitos países dificultam a aplicação efetiva do Protocolo de Nagoia. Embora alguns países, como a África do Sul, tenham uma estrutura mínima, ainda há lacunas significativas, como a falta de regulamentação retroativa para situações em que as obrigações de repartição de benefícios não foram cumpridas. 

Além disso, a falta de reconhecimento das comunidades indígenas como sujeitos de direitos, tanto em termos legais quanto práticos, impede o avanço em questões essenciais, como a autodeterminação e a aplicação de protocolos de consulta. 


Avanços no engajamento das comunidades 

Apesar desses desafios, também foram apresentadas iniciativas positivas durante a conferência, como a capacitação de povos indígenas e comunidades locais sobre seus direitos e a promoção de processos de consulta e protocolos comunitários. O fortalecimento desses processos, aliado à participação ativa das comunidades na gestão de seus recursos, é visto como uma estratégia eficaz para garantir a proteção dos direitos dos povos detentores de CTA. 

Um exemplo notável foi o lançamento do Indilinga African Journal of Indigenous Knowledge Systems, um periódico dedicado a informar sobre os sistemas de conhecimento tradicional africano e os direitos a eles relacionados. O nome do periódico, que remete ao conceito de circularidade presente na cultura das comunidades indígenas, reflete a intenção de promover uma visão integradora e respeitosa do conhecimento ancestral. 


Compromisso internacional pelos direitos dos IPLC’s 

Outro marco importante foi a assinatura de um acordo entre as entidades organizadoras, visando a promoção dos direitos dos povos indígenas e locais, com especial atenção às mulheres. O acordo busca capacitar essas comunidades e apoiar sua participação em processos decisórios relacionados à gestão de recursos territoriais e atividades econômicas que envolvam CTA. Esta iniciativa faz parte do programa da IPARD (Indigenous Peoples Alliance for Rights and Development), e a IPACC, a maior rede de povos indígenas do mundo, tem sido fundamental nesse processo. 


Negociação do Artigo 8(j) e conquistas afrodescendentes 

Durante a COP16, eventos cruciais lançaram luz sobre os direitos dos Povos Indígenas e Comunidades Locais (IPLCs) no contexto da biodiversidade, incluindo a implementação do Artigo 8(j) da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), o fortalecimento da bioeconomia e os mecanismos de acesso e repartição de benefícios (ABS). 

O Artigo 8(j) da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) reconhece e valoriza os conhecimentos, inovações e práticas das comunidades indígenas e locais relevantes para a conservação e o uso sustentável da biodiversidade. Durante a COP16, as negociações sobre esse artigo visaram a criação de um novo arranjo institucional, um órgão subsidiário que aconselhará as partes em questões relacionadas aos povos indígenas e comunidades locais, alinhando-se ao Quadro Global de Biodiversidade Kunming-Montreal. 


Uma conquista histórica foi a inclusão da categoria de povos afrodescendentes na CDB, proposta pelo Brasil e Colômbia. Antes, apenas povos indígenas e comunidades locais eram mencionados como fundamentais para a preservação da biodiversidade. Após intensas negociações, incluindo resistências de países como a República Democrática do Congo, a inclusão foi aprovada, marcando um avanço significativo para as comunidades afrodescendentes. 


Para o Brasil, isso representa um reconhecimento vital das comunidades quilombolas e seu papel na conservação de áreas ricas em biodiversidade e serviços ecossistêmicos. Apesar de já serem reconhecidas como comunidades tradicionais, muitas ainda enfrentam desafios relacionados ao reconhecimento territorial. Com essa conquista, espera-se que os direitos territoriais, a consulta prévia e a repartição justa de benefícios sejam fortalecidos. 


No Pavilhão dos Povos Afro, um evento promovido pelo Governo da Colômbia trouxe representantes do Brasil, Equador e Colômbia para discutir os desafios na aplicação da consulta prévia para povos afrodescendentes. Entre os participantes, destacou-se Jhonny Martins, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), que abordou as barreiras enfrentadas em territórios tradicionais não demarcados, especialmente no que diz respeito à implementação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). 


Os debates ressaltaram a importância dos protocolos comunitários para garantir os direitos desses povos, reforçando a necessidade de consultas inclusivas e respeitosas em projetos estatais ou privados que impactem seus territórios. Reconhecer os quilombolas como sujeitos de direitos étnicos e territoriais foi um ponto-chave, alinhado à preservação da biodiversidade e ao fortalecimento da justiça social. 


Bioeconomia e ABS na América Latina e Caribe 

Outro evento relevante, promovido pela Comissão Centro-Americana de Meio Ambiente e Desenvolvimento (CCAD), reuniu representantes da Costa Rica e República Dominicana para compartilhar iniciativas inovadoras relacionadas ao uso sustentável da biodiversidade. 


A Costa Rica destacou o selo ABS Costa Rica Biobenefícios, um modelo que une setor privado e governamental para fomentar cadeias produtivas baseadas na biodiversidade. Essa experiência tem sido reconhecida como uma referência internacional, demonstrando como políticas bem estruturadas podem fortalecer a bioeconomia e inspirar estratégias similares em outros países, incluindo o Brasil. 

Na República Dominicana, iniciativas similares têm mostrado o potencial da biodiversidade em setores como farmacêutico e cosmético, comprovando que o cumprimento dos compromissos internacionais de repartição de benefícios pode ser um motor de inovação sustentável. 


Ambos os eventos destacaram a necessidade de fortalecer os mecanismos de ABS na região, garantindo que comunidades locais e povos indígenas sejam devidamente reconhecidos como atores fundamentais para a preservação ambiental e a sustentabilidade econômica. A troca de experiências entre países da América Latina e Caribe demonstrou a força da integração regional no enfrentamento de desafios globais, promovendo um futuro mais inclusivo e sustentável. 


A contribuição do conhecimento tradicional para a conservação da biodiversidade 

Embora muitos eventos durante a conferência tenham se centrado em questões técnicas de acesso e repartição de benefícios, também houve discussões amplas sobre o papel fundamental dos saberes tradicionais na conservação da biodiversidade. Diversos representantes de povos indígenas de diferentes partes do mundo compartilharam suas perspectivas sobre como suas crenças e práticas se alinham com a preservação ambiental. Os saberes tradicionais não apenas orientam a utilização de recursos naturais, mas também promovem uma visão holística da natureza, reconhecendo-a como parte integrante da vida e não apenas um recurso a ser explorado. 


Destaca-se o evento realizado pela ONIC (Organización Nacional Indígena de Colombia) na Plaza Quebec da COP16, que abordou a relação entre espiritualidade, cultura indígena e a conservação da biodiversidade. Líderes indígenas de povos andinos, como os Embera, Arhuaco, Guna Dule, Miraña e Wayuu, compartilharam suas crenças espirituais que norteiam suas interações com a natureza e alertaram sobre os impactos devastadores causados pela apropriação e comercialização não autorizada de recursos de seus territórios. 


O poder da palavra: comunicação e responsabilidade ambiental 

Uma reflexão importante que surgiu durante esses debates foi a ideia de que o mundo precisa despertar para o poder da palavra. As lideranças indígenas destacaram a comunicação como uma ferramenta vital para a cura da Terra, sugerindo que a forma como nos expressamos pode contribuir para a conscientização ambiental. A palavra, portanto, deve ser tratada com responsabilidade e sabedoria, pois ela pode ser um poderoso instrumento na luta pela conservação da natureza e pela defesa dos direitos dos povos indígenas. 


O papel da GSS na implementação do Protocolo de Nagoia 

A GSS, como consultoria ambiental especializada na gestão da biodiversidade e na aplicação do Protocolo de Nagoia, tem um papel fundamental na disseminação dessas discussões para o setor privado. Buscamos engajar empresas e governos na adoção de práticas que respeitem os direitos dos povos indígenas e locais, garantindo a repartição justa dos benefícios gerados pelo uso do conhecimento tradicional e recursos naturais. 


Concluindo, o fortalecimento dos sistemas de CTA, a implementação de protocolos de consulta e a criação de estruturas normativas eficazes são fundamentais para garantir a conservação da biodiversidade e a justiça social. A colaboração entre governos, sociedade civil e setor privado é crucial para alcançar esses objetivos e proteger os conhecimentos ancestrais que têm sido fundamentais para a preservação da Terra ao longo dos séculos. 

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